quinta-feira, junho 08, 2006

Potências definem estratégias no jogo do petróleo escasso

Os preços contam a história. A “era da abundância” de petróleo terminou no início da década de 1970, quando o barril custava menos de três dólares. Ela foi sucedida por uma longa transição, de quase três décadas, na qual os preços reais - isto é, ajustados pela inflação - conheceram bruscas oscilações. Na virada do século XXI, começou a “era da escassez”, cujo reflexo é a tendência ao aumento dos preços do barril.

A “era da abundância” durou cerca de um século, desde as descobertas pioneiras de petróleo nos EUA até o primeiro “choque de preços”. O petróleo e a indústria automobilística desenharam a economia mundial capitalista do século XX. A geopolítica do petróleo, nos seus ciclos “britânico” e “americano”, desenhou as fronteiras do Oriente Médio e definiu as relações entre as empresas multinacionais petrolíferas e os “potentados do petróleo” do Golfo Pérsico.

A longa transição atravessou duas etapas. Na inicial, os “choques de preços” de 1973 e 1979, provocados por decisões da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), refletiram a falta de investimentos em pesquisa e prospecção de novas reservas. O cartel dos exportadores controlava a oferta e manipulava os preços, pois nas décadas anteriores de abundância as multinacionais petrolíferas acomodaram-se ao conforto das fontes conhecidas.

Mas a alta dos preços rompeu a acomodação. Incentivadas por taxas de rentabilidade inéditas, as empresas de petróleo descobriram novos campos, que logo entraram em produção. Na etapa final da transição, a oferta aumentou e fugiu ao controle da Opep. Os preços do barril caíram para um patamar próximo de quatro dólares e chegaram a desabar para profundezas inferiores a três dólares em 1998.

A “era da escassez”, que já começou, durará décadas. Ela decorre da combinação de dois fenômenos: a expansão acelerada do consumo da China e da Índia e o ritmo desolador da descoberta de novas reservas petrolíferas na última década. Hoje, sob o efeito conjuntural da crise no Iraque, os preços nominais do barril giram acima dos 50 dólares e os preços ajustados pela inflação ultrapassam dez dólares. Esses preços podem até cair, mas a marcha de longo prazo de aumento de preços parece inevitável.

O petróleo existe, fisicamente, em quantidades imensas. Contudo, as reservas economicamente exploráveis representam apenas uma fração das reservas físicas potenciais. Depois do esgotamento das reservas exploráveis, o petróleo remanescente, enterrado a grandes profundidades, custará caro demais para ser recuperado. A humanidade substituirá o “ouro negro” por outras fontes energéticas.

Na “era da abundância”, ninguém se interessava muito pelas reservas, o que importava era a produção em campos pouco profundos. Na “era da escassez”, pelo contrário, todos os olhares estão postos nas reservas economicamente exploráveis: quem oferecerá petróleo quando a maioria dos poços do mundo tiver secado?

O panorama das reservas comprovadas é desolador para os grandes consumidores. Perto de 80% dessas reservas está em países da Opep. Os “potentados do Golfo”, especialmente a Arábia Saudita, detêm a parte do leão. A ex-URSS, maior produtor e exportador atual, tem menos de 8% das reservas totais: ela não poderá substituir, em médio prazo, os fornecedores tradicionais de petróleo.

A “era da escassez” é uma era de conflito e tensão. O nome do jogo é garantir fornecimento estável de petróleo ao longo das próximas décadas. Os Estados Unidos, como maior importador mundial e principal potência global, encontra-se no centro do grande jogo. Mas, no plano regional, os maiores importadores são a Ásia/Pacífico e a Europa Ocidental. No horizonte de décadas, a dependência dos países asiáticos será muito agravada. As importações da Índia tendem a ultrapassar as do Japão. A China, que já é o segundo consumidor mundial (quase 8% do total, contra 7% do Japão e 25% dos EUA), passou a usar internamente a sua imensa produção (a quinta do mundo, em torno de 3,5 milhões de barris/dia, mais do que o México e bem mais do que a Venezuela) e, nos dois últimos anos, tornou-se importador. Nas próximas décadas, ela também importará mais do que o Japão.

Os maiores exportadores atuais de petróleo dividem-se, com raras exceções, em três grupos: os “potentados do Golfo”, a ex-URSS e os exportadores das Américas (México e Venezuela). A estratégia petrolífera dos EUA abrange políticas para essas três frentes. No Golfo Pérsico, trata-se de impedir a desestabilização política da monarquia saudita, recuperar a capacidade exportadora do Iraque e, de algum modo, derrubar o regime antiocidental do Irã. Na ex-URSS, a meta é consolidar a cooperação com o regime de Vladimir Putin e assegurar fornecimentos crescentes de petróleo. Nas Américas, o objetivo é garantir fontes alternativas às do Golfo Pérsico, o que torna vitais as relações com uma Venezuela engajada na “revolução bolivariana”.

Europeus e asiáticos dependem ainda mais que os americanos das fontes do Oriente Médio. Antes da invasão americana do Iraque, em 2003, empresas de petróleo chinesas haviam firmado contratos milionários de prospecção e exploração com Saddam Hussein. Esses contratos foram cancelados com a queda do regime iraquiano. Porém, as empresas chinesas disputam acirradamente com as competidoras americanas e européias o controle de concessões na África.

O quadro dos grandes exportadores tende a mudar com rapidez. Campos que entraram em exploração após os “choques de preços” dos anos 1970, como o do Mar do Norte, já se encontram em declínio. A Grã-Bretanha perdeu a condição de exportador significativo e logo será a vez da Noruega. A ex-URSS perderá inevitavelmente posições no ranking das exportações de petróleo, pois suas reservas não podem sustentar por muito tempo o ritmo atual de extração. Ela se tornará, isso sim, a grande fonte de gás natural para toda a Europa, pois detêm mais de 30% das reservas mundiais.

O grande jogo do petróleo começou no Oriente Médio, às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e terminará também no Oriente Médio. Essa é a profecia fácil, que decorre da análise das reservas comprovadas. A profecia difícil é imaginar o cenário geopolítico do Golfo Pérsico no futuro próximo. O fracasso americano no Iraque, as ameaças de Washington contra o Irã e a crise crônica do Estado saudita são os componentes principais do enigma, que se ramifica na Palestina e, em geral, no mundo árabe-muçulmano. Ninguém sabe decifrá-lo. Sorte dos especuladores.
FONTE: Correio Geográfico - Maio 2006 -
Número 12 - Projeto de Ensino de Geografia da Editora Moerna.
Autor do artigo: José William Vesentini
(
http://www.geocritica.hpg.ig.com.br/)
José William Vesentini é Doutor e Livre Docente em Geografia e Professor e Pesquisador no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Leciona e orienta alunos nos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado).
Pesquisa, escreve, leciona e orienta alunos nas seguintes temáticas: Ensino da Geografia e Geografia política/geopolítica.
Também realiza assessorias para escolas, secretarias estaduais ou municipais de educação e órgãos/institutos de pesquisas e/ou publicações nas áreas de geografia, geopolítica e ensino.